quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Um ipê em flor


 Eu amo os ipês. Talvez porque, assim como eu, eles florescem em setembro. Quando eu nasci, os ipês alegravam o mundo e todos os anos vibram amarelos, fazendo a vida setembrar. Dos muitos privilégios que tive, crescer em um lugar onde os ipês dominam as paisagens, é de longe o mais bonito. Meu coração é saudoso pelas amizades e pelos ipês, ambos por suas sombras acolhedoras e cores que trazem à minha existência.

Eu, tão fraca e insegura, admiro a força e a resiliência destas árvores. Ipês são professores. Os ipês trazem com eles a exuberância da primavera, mostrando ao inverno, que depois dos tempos difíceis, depois de perder suas folhas e expor suas entranhas, é preciso florescer. Ipês são imponentes e suas flores, mesmo caídas, compõem as mais belas paisagens. 

Quando vivencio grandes alegrias, minha mente se enternece e exulta, como brilham os meus olhos ao ver um ipê amarelo florido, contrastando com a grama verde e o céu azul. Não há no mundo visão mais singela e poética que a do ipê em flor.

Humana e, portanto, egoísta, sempre sonhei em ter um ipê para chamar de meu. Agora eu tenho. Lindo, ele ostenta suas primeiras flores em minha calçada e me presenteia em meu aniversário. Floresça sempre, meu ipê amarelo, brilhe alegre, seja primavera em pleno inverno para nos lembrar que a vida é linda. 

terça-feira, 21 de julho de 2020

As lições do crochê


Eu fiz um gorro de crochê, pequeno, demorado e, aos meus olhos, lindo.
Ao tecê-lo entendi que um grande desafio exige paciência e que um trabalho pequeno pode ser um desafio colossal para uma aprendiz iniciante.
Entendi que a primeira experiência nem sempre é perfeita e, embora o resultado seja agradável, o percurso não é totalmente prazeroso.
Errei diversas vezes. Erros grotescos, erros pequenos, erros por falta de atenção. Alguns deles eu pude consertar sem maiores consequências, mas entendi também que às vezes é preciso recomeçar, trocar a agulha, o fio, repensar. Eu quis desistir e me irritei.
Eu mexia o fio infinitamente para lá e para cá. Passava-o por cima, por baixo, desmanchava os nós, mas o trabalho não rendia. A cada carreira finalizada, o media, na esperança de atingir o tamanho ideal. Então, notei que uma carreira sozinha não faz uma touca, mas o entrelaçamento cuidadoso do fio nos aquece.
Por fim, com o trabalho pronto, aprendi que há erros que apenas eu, que teci cada ponto daquele gorro, consigo notar. Outras falhas, somente os mais experientes conseguem identificar.
Eu decidi confeccioná-lo em um dia de muito frio. Ao terminá-lo, o sol brilhava e o calor nos aquecia. Se eu tivesse prestado atenção na lição da fábula da cigarra e da formiga, saberia que é durante o verão que devemos nos preparar para o inverno. 
Aos olhos da maioria é um simples gorro. Para mim, um processo, uma aprendizagem, uma conquista. Eu fiz um gorro de crochê e ao tecê-lo aprendi a viver.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Infinitos


Eu moro em Irati, no interior do Paraná. Minha cidade tem 60 mil habitantes. Dentre eles, muitas pessoas que eu amo, grandes amigos, outros apenas conhecidos, alguns desafetos e outros com os quais meus caminhos nunca se cruzaram.

Hoje, oficialmente, somaram-se 60 mil pessoas no Brasil que perderam a vida para uma doença invisível e de nome esquisito, que muitos duvidam existir.

É como se todos os moradores da cidade, do campo e dos mais distantes lugarejos que integram Irati tivessem sumido do mapa, sem ninguém restante para contar nossas histórias.

Tem gente dizendo que é pouco em um contexto de 210 milhões de brasileiros. Mas, para mim, um, o número 1, quando representa uma vida, é muito. Mais do que muito, pode também ser tudo na vida de um outro alguém: uma mãe, um pai, um filho, um companheiro... 

Enfim, cada ser, em sua singularidade e pequenez, é o infinito na vida de alguém.

É na infinitude dos sentimentos abstratos e intocáveis que a vida se engrandece. É também na infinitude do sentimento de saudade que a dor é maior.

Eu lamento, me comovo e choro pelas 60 mil vidas.

Eu lamento, me comovo e choro pelos 60 mil infinitos que se findaram.   

domingo, 12 de abril de 2020

O carro do sonho


O carro do sonho ia passar pela minha rua. Isso nunca havia acontecido. Ouvi de longe a sua chegada. Anunciava sonhos de vários tamanhos e assegurava agradar as pessoas de todas as idades.
Desci as escadas correndo, pensando em todos os sonhos que poderia encontrar. Deixei a porta e o portão abertos por descuido, mas tenho certeza que era o destino deixando a passagem livre para os sonhos entrarem.

Quando ele dobrou a esquina, parecia-me um carro forte o suficiente para carregar os melhores sonhos do mundo. Era velho, amassado, batido, como um carro que carrega sonhos deveria ser. Se carregar sonhos fosse trabalho leve, não nos arrastaríamos a vida toda com(tra) alguns. Trazia na lataria remendada as marcas dos sonhos mais difíceis.

Corri ao seu encontro, afinal, não se pode esperar que os sonhos venham ao nosso portão. É preciso esforço para merecê-los. Cheguei ofegante e, assim que ele me viu, parou para mim. Desceu dali um senhor gordo, camisa aberta até o umbigo, suor escorrendo na testa, os pelos do peito saltavam para fora, mostrando em sua cor acinzentada que há muito tempo este senhor carregava os melhores sonhos do mundo em sua parati. Meu coração batia fora de ritmo e uma lágrima fazia-se pesada em meu olho. No fechar de uma pálpebra ela cairia como cataratas lavando meu rosto. Mas eu não piscava, talvez nem respirasse naquele momento infinito. Quando ele abrisse o porta-malas eu teria que escolher, dentre todos os sonhos que tinha, um, apenas um. Como escolher? Transpirava e tremia, ansiosa.

“Boa tarde, minha filha!”, ele me disse. Era como se o Tempo falasse comigo. Eu imaginava o Tempo como um senhor elegante, com um relógio de bolso, a nos controlar. Mas a vida é mestra em nos surpreender. O Tempo era estranho como o velho que eu via sentado na praça observando o tempo passar. “Temos poucas opções agora. Os sonhos são frescos e feitos todos os dias. No final da tarde é o que tem”. O Tempo me ameaçava dizendo que eu não teria muitas escolhas. “Nem sempre a vida nos dá opções”, pensei. Mas eu tive a certeza de que meu sonho estaria ali, porque a cada aurora meus sonhos se renovavam. Eram sonhos novos, como os que eu queria.

O porta-malas-sonhos da parati abriu-se rangendo, causando-me um arrepio na espinha. O cheiro doce da realização saia ali de dentro. Havia açúcar para todo lado. Sempre imaginei que as conquistas seriam doces e açucaradas, seriam um lambuzar-se e terminar satisfeita, com um bigode de açúcar e dedos lambidos. Os cestos estavam cobertos com toalhas xadrez, vermelhas e brancas, como em um piquenique perfeito, em um parque com sombras, grama verde e céu azul.   

“Vai querer de creme ou goiabada?”, indagou. “Gosto apenas dos sonhos de doce de leite”, respondi ainda tonta, golpeada pela desilusão e pelo odor de fritura. Voltei para casa de mãos vazias, peito arrasado e costas pesadas porque cabe a mim, apenas a mim, carregar o peso dos sonhos não realizados. 

quarta-feira, 11 de março de 2020

Discurso de paraninfa do curso de Letras Inglês - UNICENTRO 2020


Querid@s alun@s, recebo esta missão de fazer-lhes uma última aula com humildade e emoção. 

Vocês são, agora, professoras e professores! Há algo mais lindo do que isso? Por isso eu repito: Vocês são agora professoras e professores. A partir deste momento vocês dividem conosco a grande responsabilidade que é o ato de educar em um país que tanto limita a educação do seu povo.

Ouvimos repetidamente que a educação no Brasil não deu certo. Uma deputada federal de nosso estado recentemente disse que investir mais dinheiro na educação seria como colocar mais água em uma mangueira gigantesca e cheia de buracos. Ela finalizou sua fala dizendo que “nossos professores não sabem ensinar”. É dolorido e muito triste ouvir opiniões degradantes de quem não conhece o chão e a poeira do giz de uma sala de aula.

Por isso eu lhes digo, cuidado! Cuidado queridos graduados, para não reafirmarem este discurso que serve de justificativa para privatizações e para a desvalorização de nosso trabalho e carreira. Defendam a educação pública! Olhem para as suas histórias e encontrem nelas o contraditório!

Quando eu vejo aqui, no interior do Paraná, que os filhos de pequenos agricultores e assalariados, assim como os filhos dos ditos doutores, conquistam diplomas universitários, tenho a certeza de que a educação está dando certo. Olhar para vocês deixa-me convicta de que a educação pública deu certo e prosperará!

Escolher uma carreira na educação é uma escolha corajosa no Brasil atual. Escolher a educação é acreditar em um futuro melhor, em que a terra voltará a ser esférica, o Di Caprio será apenas o protagonista do Titanic e os livros didáticos estarão cheios, repletos, infestados de palavras! Palavras de rebeldia, de enfrentamento, de feminismo, de igualdade, de diversidade, de fraternidade e de transformação!

Como professora, afirmo que nós, profissionais que fizemos parte de sua formação, temos muito orgulho de vocês. A sua conquista representa muito para nós porque aprendemos com vocês muito mais do que ensinamos. Eu aprendi com a dedicação de quem viajou toda noite durante quatro anos para estar nas aulas. Aprendi quando vi vocês trazendo marmitas de casa para economizar com a alimentação. Aprendi com as suas dificuldades, pois elas demonstraram as minhas falhas. Aprendi quando vocês me fizeram perguntas que eu não soube responder porque aquilo que eu ignoro é muito maior do que o pouco que eu sei. Os meus alunos que estão vindo depois de vocês terão uma professora melhor e por isso, além de meu orgulho, levem com vocês a minha eterna gratidão.

Vocês são a prova de que a educação pública e gratuita tem qualidade, vai bem e com vocês nas salas de aula, irá ainda melhor. 

Voem alto! Leiam muito, questionem e revolucionem! Façam ciência! Libertem mentes, inovem e sejam felizes! Tomem suco de laranja! E tomem cerveja também!

E lembrem-se: Gritem alto, forte e em bom som: “Você não” para todos aqueles que desvalorizam o saber docente! “Você nunca” para quem não acredita em educação! E digam com uma força maior ainda: nós somos mais fortes! O conhecimento e a educação sempre, sempre vencerão!

(Discurso proferido por ocasião da cerimônia de colação de grau do curso de Letras-Inglês e demais cursos do setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da UNICENTRO (Universidade Estadual do Centro-Oeste), realizada em 11 de março de 2020).