terça-feira, 22 de julho de 2014

Distração

Conta-se por aí, a peripécia de um prefeito que precisou viajar para uma importante reunião em Curitiba. O homem se produziu para o encontro, afinal, prefeito de primeira viagem, conversaria pela primeira vez em uma reunião privada com o governador. Era sua oportunidade de mostrar tudo aquilo que sabia e que sua cidade precisava.
Terno bem passado, camisa nova e gravata compunham seu figurino, cuidadosamente pensado para a ocasião. Combinou com o motorista que almoçariam no caminho, evitando atrasos. 
Conforme já estabelecido, pararam para almoçar na cidade de Palmeira. Desceram e foram direto ao buffet para se servir. Seguindo o conselho da esposa, não colocou no prato nenhuma comida com molho, para evitar respingar em sua roupa, como costumeiramente acontecia em casa. Conhecendo bem o marido que tinha, a esposa cuidadosa fez que ele levasse consigo uma camisa extra, caso o molho do macarrão ou o caldo do feijão manchassem a que vestia.
O prefeito terminou sua refeição antes do motorista e foi buscar uma sobremesa que lhe pareceu muito apetitosa, quando serviu-se do almoço no buffet. Foi então que o motorista o olhou e percebeu o que havia acontecido. Logo que o chefe retornou à mesa, discretamente ele lhe disse:
“Prefeito, o senhor está com os sapatos trocados. Um pé de um e um pé de outro”. 
Um sapato era marrom, o outro preto. O prefeito olhou para os pés e colocou as mãos na cabeça:
“E agora, como vamos fazer?”
“Já estamos longe, acho que não adianta voltar”, disse o motorista, calmamente.
E o prefeito respondeu bravo, achando a ideia de voltar muito absurda:
“Mas é claro que não adianta voltar! Pois lá também ficou um pé de um e um pé de outro!”.

Como dizia minha mãe quando lia para mim historinhas infantis,https://mail.google.com/mail/u/0/images/cleardot.gif “essa história entrou por uma porta e saiu pela outra. Quem souber, que conte outra”.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Quando os anjos falam

O último adeus faz até os corações mais insensíveis esmorecerem.
Caminhamos com o grupo, ouvindo apenas o som dos paços pelo cemitério. Logo chegamos ao túmulo. Ficamos mais atrás, acompanhando de longe a cerimônia.
Ela tinha uma saúde de ferro, faltando poucos dias para seus 92 anos, sua lucidez impressionava. "Eu adoro cantar", ela contava, emendando uma reclamação: "Não sei por que na igreja não distribuem mais aquele livrinho Louvemos ao Senhor, era tão bom".
Lembrando disso, suas amigas de cantorias e missas soltaram a voz. "Não temas, segue adiante e não olhes para trás, segura na mão de Deus e vai". Foi então que vozinha fina e doce me questionou: "O que elas estão falando tão alto?". Aqueles olhos azuis inquisidores e a seriedade de seu rosto, em meio aos cabelos cacheados, me mostravam que eu não poderia deixar de responder. "É uma música. A vó Guenha gostava muito de cantar", disse eu. "Eu quelia ver". Diante daquele pedido, a peguei no colo para que pudesse ver o que estava acontecendo lá na frente. Mostrei as amigas de sua bisavó, que cantavam para se despedir dela da forma que mais gostava. "Você sabia que as pessoas que já estão molidas ficam nessas caixinhas?", disse-me, apontando para os túmulos, como quem conta um segredo que só ela sabia. "Aham", eu respondi, intimidada com a naturalidade que aquela pequena falava da morte. "Eu quelia ver a caixinha da bisa". "É ali na frente", mostrei.
Logo depois, as senhoras do coro decidiram cantar em polonês, a língua materna da minha tia avó. "Essa música era uma das que a dona Guenha mais gostava, ensinou até o netinho a cantar", explicou uma das senhoras antes de começar.
"E agora, o que elas estão falando?", questionou a pequena ainda em meu colo. "Elas estão cantando uma música em polonês que a vó Guenha gostava muito", respondi. "Gostava muito dessa música?", indagou novamente para ter certeza da resposta. "Sim, ela gostava muito dessa música". Então, como se compreendesse a solenidade daquele momento e soubesse que aquele era o último instante de sua bisa neste plano, sem saber uma única palavra em polonês, ela começou a cantarolar, seguindo o ritmo das amigas da avó. Cantava como se conhecesse a melodia. Segurei as lágrimas. Não se deve chorar com uma criança tão linda e esperta em seu colo.
Quando a canção terminou, seus olhinhos novamente me fitaram. "Você acha que ela gostou? Acha que ela está muito feliz?". Então compreendi que quando os anjos falam não há quem não se emocione. Sorri e concordei, ela certamente estava muito feliz.

Sem receios, apesar das minhas lágrimas, ela continuou. "Aquelas fotos são das pessoas que já estão molidas", apontou. "Sim, elas servem para que nos lembremos das pessoas que estão aqui", disse eu. "Hmmm... eu nunca vou esquecer", disse incisivamente. Logo depois bateu as asas, saiu do meu colo e correu para os braços do avô, curiosa para ver a "caixinha" da bisa.

Texto: Carolina Filipaki
Ilustração: Laércio Soares