O
último adeus faz até os corações mais insensíveis esmorecerem.
Caminhamos
com o grupo, ouvindo apenas o som dos paços pelo cemitério. Logo chegamos ao
túmulo. Ficamos mais atrás, acompanhando de longe a cerimônia.
Ela
tinha uma saúde de ferro, faltando poucos dias para seus 92 anos, sua lucidez
impressionava. "Eu adoro cantar", ela
contava, emendando uma reclamação: "Não sei por que na igreja não
distribuem mais aquele livrinho Louvemos ao Senhor, era tão bom".
Lembrando disso, suas amigas de cantorias e missas soltaram a
voz. "Não
temas, segue adiante e não olhes para trás, segura
na mão de Deus e vai". Foi então que vozinha fina e doce me questionou:
"O que elas estão falando tão alto?". Aqueles olhos azuis
inquisidores e a seriedade de seu rosto, em meio aos cabelos cacheados, me
mostravam que eu não poderia deixar de responder. "É uma música. A vó
Guenha gostava muito de cantar", disse eu. "Eu quelia ver". Diante daquele pedido, a peguei no colo para que
pudesse ver o que estava acontecendo lá na frente. Mostrei as amigas de sua
bisavó, que cantavam para se despedir dela da forma que mais gostava.
"Você sabia que as pessoas que já estão molidas ficam nessas caixinhas?", disse-me, apontando para os
túmulos, como quem conta um segredo que só ela sabia. "Aham", eu
respondi, intimidada com a naturalidade que aquela pequena falava da morte.
"Eu quelia ver a caixinha da
bisa". "É ali na frente", mostrei.
Logo depois, as senhoras do coro decidiram cantar em polonês,
a língua materna da minha tia avó. "Essa música era uma das que a dona
Guenha mais gostava, ensinou até o netinho a cantar", explicou uma das
senhoras antes de começar.
"E agora, o que elas estão falando?", questionou a
pequena ainda em meu colo. "Elas estão cantando uma música em polonês que
a vó Guenha gostava muito", respondi. "Gostava muito dessa música?",
indagou novamente para ter certeza da resposta. "Sim, ela gostava muito
dessa música". Então, como se compreendesse a solenidade daquele momento e
soubesse que aquele era o último instante de sua bisa neste plano, sem saber
uma única palavra em polonês, ela começou a cantarolar, seguindo o ritmo das
amigas da avó. Cantava como se conhecesse a melodia. Segurei as lágrimas. Não
se deve chorar com uma criança tão linda e esperta em seu colo.
Quando a canção terminou, seus olhinhos novamente me fitaram.
"Você acha que ela gostou? Acha que ela está muito feliz?". Então
compreendi que quando os anjos falam não há quem não se emocione. Sorri e
concordei, ela certamente estava muito feliz.
Sem receios, apesar das minhas lágrimas, ela continuou.
"Aquelas fotos são das pessoas que já estão molidas", apontou. "Sim, elas servem para que nos
lembremos das pessoas que estão aqui", disse eu. "Hmmm... eu nunca
vou esquecer", disse incisivamente. Logo depois bateu as asas, saiu do meu
colo e correu para os braços do avô, curiosa para ver a "caixinha" da
bisa.
Texto: Carolina Filipaki
Ilustração: Laércio Soares
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