terça-feira, 7 de novembro de 2023

Sobre as avós e os dias de chuva

Quando eu era criança, no início dos anos noventa, não tínhamos telefone em casa. Então, no domingo à noite, meu pai nos convidava para ligar para a vó Maria. Nós morávamos em um lugar lindo, que fazia jus ao seu nome: Fazenda Monte Alegre. Um lugar de ruas largas, com imensas árvores e cantos de passarinhos, onde eu aprendi a amar os ipês. Eu pegava minha bicicleta, amarela – vibrante como as flores dos ipês, e ia feliz, serpenteando na frente, enquanto ele nos seguia a pé, até o escritório. Eu gostava do cheiro de limpeza e do eco que fazia ao adentrar o prédio vazio. Lá, naquele telefone cinza e de fio embolado, antes tão populares, mas que hoje não se vê mais por aí, ele chamava a telefonista pedindo uma ligação para Irati, Paraná. Em poucos instantes ouvíamos o trimmmmmmmm estridente, hoje tão saudoso. Era a telefonista que retornava com minha avó do outro lado da linha.
Depois de conversar um pouco, ele me colocava para bater papo e escutar o que a vovó tinha a nos contar. Ela perguntava da escola, dos amiguinhos, dos peixes do aquário, do cachorrinho. Ela morava no alto do bairro, em uma casa amarela, de madeira, com varanda “em L” na frente. As calçadas avermelhadas eram feitas de caquinhos e ganhavam vida com as flores coloridas e sempre bem cuidadas, ladeando a casa e as cercas: beijinhos cor-de-rosa, margaridas brancas e pimentas sarapintadas, entre tantas mais...
No quintal da casa da vó, havia um mar de alface. Toda manhã e tarde elas eram regadas. Iam para as nossas refeições e para muitas outras mesas dos arredores, pois os vizinhos, perto da hora do almoço, batiam no portão para comprar as verduras fresquinhas da dona Maria.
“Hoje choveu muito”, ela dizia ao telefone. “Está coisa mais linda aqui do alto! As alfaces estão crescendo de um dia para o outro, dá até para ver as folhas dobrando de tamanho. Aqui do alto, consigo enxergar o festival de guarda-chuvas coloridos. As crianças vão para a escola felizes com suas sombrinhas e as moças vão trabalhar apressadas. Coisa mais linda! Uma de cada cor”, ela relatava. Eu ouvia e imaginava como eram lindos os sombreiros coloridos circulando pelas ruas. Na minha cabeça de criança, parecia um carnaval multicolorido, com sombrinhas dançando frevo enquanto a água caia, insistente, do céu enevoado. De tempos em tempos, de fusca amarelo, percorríamos os 250 quilômetros de distância para visitá-la. Mas, nos dias de chuva, por mais que eu estivesse pertinho e de olhos atentos, jamais consegui ver as folhas de alface crescendo. Eu abria a porta e, lá da varanda "em L" da charmosa casa de minha vó, naquela época tão grande para mim, eu não enxergava muito. Sempre achei que fosse culpa da minha altura. Escalava os pilares, mas nunca era alto o suficiente para avistar o arco-íris. Pensava que, com o tempo, cresceria e poderia ver a maravilha do desfile de guarda-chuvas coloridos lá embaixo.
Cresci e descobri que as folhas realmente se desenvolvem mais rápido quando chove, mas não se vê a olho nu, ainda mais com o afã da vida adulta. Notei também que os guarda-chuvas de fato invadem as ruas quando chove. Aqui, no andar de cima, no centro da cidade, neste dia chuvoso, me dei conta que há sempre maneiras mais belas de narrar o cotidiano. Os dias chuvosos não precisam ser tristes nem cinzas. O brotar das folhas pode ser, sim, um milagre e não um fato corriqueiro da natureza. Daqui do alto, bem mais alto do que a linda varanda “em L” da minha vó, percebo que a maioria dos guarda-chuvas é preta. As avós, além de tornarem as mesas mais doces, fazem do nosso pequeno mundo um lugar mais colorido.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Borboletar

Por muito tempo eu fui monocromática. Por vários anos eu me escondi dentro de mim. Hoje sou cor. E quem me vê colorida não sabe de onde vem o arco-íris. Os dias nove são de festa. Em um dia nove, no centro cirúrgico, como nascem os bebês, eu renasci. Mas, já nasci mulher feita, forte e determinada. Em vez de crescer, diminuí para poder caber em mim. Precisei renascer porque escolhi viver. E cada dia nove faz com que eu me renove, renasça e reflita. Desde aquele dia nove, eu me olho com mais amor. As fotos, que para tantos são banais, para mim são desafios. Braços, pernas, sorriso a mostra... Hoje comemoro os registros de cada dia. Nem todos os dias são bons, mas há algo de bom todos os dias. Não sou vencedora, jamais serei. Há batalhas que são eternas. Luto diariamente. Porém, a luta é, literalmente, mais leve e bonita.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Epitáfio à moda de Sabino

Aqui jaz a Carolina, que nasceu mulher e morreu menina.

domingo, 4 de junho de 2023

Além do dendê

Findei ontem meu primeiro semestre letivo e amanhã começo a ministrar um curso de férias.

Eu vim à Bahia para ensinar os "ei, bi, cis", mas, até então, eu pouco ensinei e muito aprendi.

O tempo aqui corre diferente. O sol levanta cedo para fazer brilhar a Bahia, suas baías e os lindos baianos e baianas.

Os ponteiros do meu relógio precisaram entender que o tempo pode ser mais lento ou muitíssimo acelerado. Há muito a se fazer e mais ainda a se viver.

A vida é leve e o tempero é forte: É coentro, pimenta e carinho para dar sabor e cheiro às panelas. Provei as frutas que até então só conhecia na música de Alceu Valença.

São João me puxa pela mão para bailar forró, sentir cheiro de lenha ardendo na fogueira e ver o vento brincar com as bandeirinhas coloridas sob o céu azul.

Virei “flor”, “amor”, “meu rei” e “meu dengo”... Virei "pró"... E não há nota que não se arredonde [mentira!] e coração que não derreta quando vem alguém com o rostinho de lado e os olhos medrosos enunciando: "Ô pró, deixa eu lhe dizer...".

O abraço virou um cheiro... E como abraçar me cheira bem! (Com o perdão do trocadilho!)

Passei a desejar crianças que chamem de "mainha".

Aprendi a ter galhardia com quem negocia saídas para os estudos junto aos seus patrões, nos pequenos comércios alvoroçados, que funcionam das sete da manhã às sete da noite,  comandados por gente muito trabalhadeira.

A vida é uma professora muito melhor do que eu e insiste em me fazer ver que aquilo que eu ignoro é muito maior do que o pouco que eu sei.




sábado, 15 de abril de 2023

Viver

 Viver é colecionar saudades. 

quarta-feira, 15 de março de 2023

Árvore genealógica

Escravo e escrava; agricultor e agricultora, meus trisavós Escravo e escrava libertos; agricultor e agricultora, meus bisavós. Açougueiro e cuidadora de pensão; caminhoneiro e dona de casa, meus avós. Professora e técnico florestal, meus pais. Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, eu. É pelo trabalho e história de todos os que vieram antes que eu estou aqui.