Minha dentista era gente finíssima, contrariando o seu físico de gordinha, alta, com uma gargalhada que compete com a minha. A assistente só não era alta, no restante eram iguais. Uma loira, outra morena. Eu, paciente, sofria por não poder falar o tempo todo enquanto ela me tratava. Ir ao consultório era sempre divertido, apesar do barulho estressante do motor e da anestesia. Três gordas bem humoradas numa sala era fato que deixava os pacientes que aguardavam curiosos para saberem o motivo das risadas.
Eu conhecia a Maria desde criança. Aproximadamente 10 anos mais velha do que eu, sempre ouvia falar que ela estava estudando fora. A encontrava na rua durante as férias ou finais de semana, sempre simpática. Eu adorava o cachorro que ela tinha, um dálmata. O único que eu tinha visto até o lançamento do filme da Disney.
Volta e meia antes da consulta, ela ou a Joana, a assistente, ligava para saber se eu iria. Uma vez cheguei a chorar de vontade de rir quando eu estava sem poder falar e a Joana soltou essa: “Onde você compra calcinha, Carol? Porque outro dia eu fui comprar lingerie. A vendedora me apareceu com umas ‘carçolas de veia’. Pior é que tinha uma vermelha! Aaaaaii que raiva que me deu! De certo ela pensou que se eu levasse um fio dental tinha que atravessar a rua e comprar também um pé-de-cabra pro meu marido conseguir tirar a calcinha de lá...”. Quando consegui me controlar ela complementou: “Eu nem queria fio dental. Mas bandeira do Mengão o Zé já tem”.
Às vezes, no meio da consulta o celular dela tocava. Se era um avião decolando era o maridão ligando para dar um oi. “Quando é você posso atender”, dizia rindo. Então pedia para ele ligar mais tarde porque estava atendendo uma paciente importante. “Já carreguei ela no colo, acredita?. Eu estou ficando velha”, contava.
Eu sabia que ela estava doente. Não parecia nem comentava. Quinze dias antes fui até lá para buscar uma placa de silicone que havia encomendado e como o paciente faltou, sentei e rimos o tempo de uma consulta. Não lembro quem ligou naquela noite, só lembro da vontade de chorar. De manhã fui ao velório. “A gente sabia que era grave, mas esperava que fosse aí mais uns 10 anos, sei lá”, disse o pai dela inconformado para nós. Chorei.
Sou medrosa, mas pela primeira vez na vida não tive medo de sentar perto do caixão. Ela era minha amiga e não havia lugar mais longe. Fiquei bem na altura das suas mãos. Elas estavam inchadas, enormes como eu nunca havia visto. Fiquei olhando as pessoas que chegavam perto, as que choravam, as que rezavam, as que faziam carinho. Viajando nos pensamentos sobre a brevidade da vida, eu lembrava das suas gargalhadas. Ela parecia sorrir, deixando um resquício de vida àquela palidez. Soube, ouvindo as conversas alheias, que dias depois do nosso último encontro ela foi para o hospital. Fiquei triste por não saber.
Então, no bolso do meu casaco vermelho o celular vibrou. Era um modelo de flip. Eu estava desempregada, então achei melhor ver quem estava ligando antes de desligar. Neste momento eu tenho certeza que ouvi a gargalhada inconfundível. No identificador apareceu: “Maria dentista chamando”.
Olhei para ela, olhei para o aparelho. Olhei para ela, olhei para o aparelho. Repeti o gesto mais três vezes, pelo menos. Nas mãos dela um terço, nenhum movimento. Saí de lá com os olhos arregalados - só minha mãe que estava perto sabe dizer o tamanho do susto. Atendi: “Oi Carol, é a Joana. Queria te...”. “Oi Jo, eu sei! Já estou aqui. Obrigada por ligar”. “Ai que bom, ela te queria tão bem”.
Voltei e não pude deixar de rir. “Meu celular nunca toca e quando toca é o morto me chamando para o próprio velório... Só você, né?”, pensei.
Sei lá se no céu tem internet, banda larga, se lê blog ou pensamento. Só tenho certeza que está rindo. Deve ter combinado tudo com a Joana pra garantir uma piada pra contar a São Pedro.
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
16 fizeram a Carol feliz...:
Você conseguiu em menos de 1 minuto me trazer às lágrimas e me fazer dar uma gargalhada. Pelo que você descreveu, ela realmente iria gostar muito dessa última brincadeira entre as três amigas. Um beijo, Deia
Como sempre... vc arrasou!! Hilária como sempre :-)
Muito bonita a história. Fui das gargalhadas às lagrimas - e depois às gargalhadas de novo!
=)
Aiii amei Carol.
Uma história bonita, triste e engraçada, digna de um post para eternizá-la.
Carol, lindo. Eu ri, ri muito, mas ainda estou com as lágrimas nos olhos. Pode ter certeza, ela está rindo lá no céu, também.
Fico feliz que a ultima lembrança de vcs foi boa e que ela não se deixou abater pela doença, por conseguir levar a vida do mesmo modo de sempre e com uma boa piada no bolso. Mas infelismente as pessoas se vão.
Mas onde quer que ela esteja com certeza ela está cuidando de vc.
Beijos
Adorei a história e a maniera leve e divertida como vc a contou. :)
MUITO BOM!!!
beijos
Realmente uma bela história...
parabéns
abraço
HUAHUAHAUHAUA, só vc pra m levantar amiga, depois de uma febre de 40 graus e uma quase convulsão.
Bonita história, como sempre, com a sutilieza e o bom gosto de dona Caroline! Beijos.
Carol, cômico se não fosse trágico!
Mas sua maneira de escrever, toca o coração da gente!
Beijocas.
Você tem um estilo unico e ótimo !
parabens!
rs
Me emocionei, fiquei triste... mortes sempre me deixam triste!
Mas o bom humor do final me contagiou rarsrs...ja pensou, receber o telefonema da morta rs, só vc!!
Com certeza os anjos e arcanjos estão se divertindo muito agora... e dando altas risadas nos corredores celestiais!
bjs
estou rindo até agoora, mas por um momento quase chorei! Muito boa historia, ja recomendei a leitura.
Infelizmente, é parte da vida, por isso temos de ser gratos pelo tempo que vivemos com pessoas especias para a nossa vida.
Fique com Deus, menina Carolina Filipaki.
Um abraço.
PUTA QUE PARIU CAROLINA
(alias começar comentários aqui com puta q pariu anda sendo recorrente)
com quem mais no mundo esse tipo de coisa acontece?
PS.
A maria, deica ser mesmo mto especial, dessas q a gente sente saudade sem nem conhecer, só de imaginar
adorei a história Carol...
Postar um comentário
Fala que eu te escuto!