quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O mundo há de ser salvo


O mundo não será salvo por grandes heróis... O mundo será salvo quando nós conseguirmos fazer com que as crianças se transformem em adultos gratos pelo que aprenderam e por quem os ensinou. O mundo será salvo quando não nos importarmos em nos desfazer de algo nosso para alegrar alguém. O mundo será salvo quando soubermos dizer “eu te amo” livremente a quem nos toca o coração. O mundo será salvo quando conseguirmos fazer com que as pessoas não percam a doçura da infância frente às amarguras da vida.

O que me deixou tão esperançosa foram os presentes que meu esposo recebeu no último dia letivo. Ele é professor do quarto ano do Ensino Fundamental. Hoje chegou em casa com as mãos cheias e o coração transbordando. Fiquei profundamente emocionada com os mimos recebidos.

Uma das crianças o presenteou com duas garrafinhas de refrigerante, daquelas que são vendidas a noventa e nove centavos. Segundo ela, “trouxe duas porque uma é para a sua esposa”. Ela deve ter investido o dinheiro que tinha disponível e me presenteou sem ao menos me conhecer...  Outra criança o presenteou com um apontador usado. Certamente, tirou do próprio estojo para ter o que dar ao professor. Um dos alunos deu-lhe figurinhas de papel jornal recortadas a mão. Havia também doces, uma caneca, um creme para a pele e diversos bilhetes dizendo o quanto o admiram. Várias cartinhas foram ilustradas com partes da tabuada: “Foi você que me ensinou, professor”, explica uma delas.

Atitudes tão singelas me fazem acreditar que o mundo pode ser salvo.  É preciso repetir: O mundo não será salvo por grandes heróis... O mundo será salvo quando nós conseguirmos fazer com que as crianças se transformem em adultos gratos pelo que aprenderam e por quem os ensinou. O mundo será salvo quando não nos importarmos em nos desfazermos de algo nosso para alegrar alguém. O mundo será salvo quando soubermos dizer “eu te amo” livremente a quem nos toca o coração. O mundo será salvo quando conseguirmos fazer com que as pessoas não percam a doçura da infância frente às amarguras da vida.

 

quarta-feira, 26 de maio de 2021

(d)Escrita

Eu não escrevo para

Escrevo sobre...

Sobre a vida

Sobre ninguém

Sobre mim

Sujeita pós-moderna

Egoísmo sem fim

segunda-feira, 29 de março de 2021

Par(t)ir

Escrevo porque a vida dói. E porque dói eu sei que [ainda] estou viva. 

A morte é um parto que dura a vida toda. 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Velórios são para os vivos

Velórios são momentos únicos.  

No velório a tristeza impera, mas é também naquele ambiente que vemos os parentes e amigos que há muito tempo não encontrávamos. O velório é uma festa sem alegria. Os velórios são para os abraços. Os velórios são para os vivos. 

Na minha família não faltam histórias de velórios.

Ao velarmos uma tia muito amada, suas cunhadas discutiam, na alta madrugada, se poderiam ou não dormir, pois, por uma questão de flatulência incontrolável durante o sono, era possível que acabassem com a solenidade do momento. Não houve choro que não cessasse momentaneamente diante de tal diálogo. 

Minha irmã sempre erra o terço e eu, com as mãos no rosto, tento fingir que choro, quando rio da falha recorrente, praticamente uma tradição. Já sugeri a ela que tatue a Ave Maria nos punhos para evitar constrangimentos. 

No velório de um tio muito querido, sua nora, muito prestativa, pegou a chave da capela do cemitério para limpá-la. Disse aos parentes “de sangue” para não se preocuparem. A gaveta foi cuidadosamente escolhida, nem muito em cima, para não ter excesso de sol, nem muito embaixo, perto demais da terra. Asseou tudo para que a morada eterna recebesse o sogro. Na hora do enterro, a confusão: ela limpou a sepultura errada. Abriram o local certo às pressas e assim, entre sorrisos e lágrimas, nos despedimos do tio amado. Esse mesmo tio ficou alguns dias no hospital antes de falecer. Após o sepultamento, seu filho, que havia ido ao hospital para resgatar os pertences do pai, vai até minha tia com um embrulho. “Não sei o que fazer com isso”, diz, entregando à mãe. Ela abre, vê uma prótese e ri descontroladamente: “Seu pai nunca usou dentadura. Você deixou alguém banguela! ” A história provoca muitos risos sempre que é contada em família e as conversas seguem com outros feitos protagonizados pelo saudoso tio.

No velório relembramos as proezas de quem jaz e não pode mais relatá-las. Sempre tem alguém para contar um causo que fará todos rirem ou suspirarem orgulhosos e saudosos. Os mortos sobrevivem nas lembranças dos vivos.

Velórios são temperados com lágrimas e sorrisos. Velórios são sobre os abraços que podem ser dados e os que nunca mais serão possíveis.

Nos velórios amamos com toda a intensidade. Velório é momento de reflexão. Ali imaginamos como a vida será mais difícil, triste e sem graça sem esse alguém. 

Velórios são um rito de passagem. São dolorosos porque, uma vez fechada a sepultura, quem ali fica segue para a vida eterna e quem sai é condenado a voltar à vida terrena e tão incerta. 

A pandemia nos tirou o direito de velar nossos mortos e acalentar os vivos. Na pandemia a despedida (e a falta dela) é ainda mais triste. 

***

A quem perdeu alguém querido e não pôde ser consolado, desejo que as boas lembranças inundem seu coração e que em breve possamos nos abraçar.

 

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

O cu da professora

 


Professor em sala de aula é rico. Não em dinheiro, é claro, mas em histórias para contar. São pérolas incomensuravelmente mais valiosas do que as raras joias das vitrines e leilões...

Em uma manhã clara e gélida de inverno, o sol entrava pela janela da sala de aula da velha escola. A poeira circulava magicamente, brilhando sob a luz do sol. As crianças, no auge de seus oito anos de idade, com galochas, gorrinhos e luvas, copiavam silenciosamente o conteúdo. Cada respiração era ouvida e vista, como se o calor das mentes efervescentes provocasse uma reação química em contato com o ar. Um dia perfeito, calmo e tranquilo para ensinar. A professora encheu o quadro, muitas contas e problemas com enunciados complexos para resolver.

Mas, toda sala tem aquele aluno malandro, que gosta de fazer piada e tem pavor de silêncio. Enganam-se os que pensam que com seus abraços e boas notas estarão para sempre na memória dos amados professores. Talvez em seus corações, mas não na memória. Pelo contrário, os terríveis, os agitadores e baderneiros é que serão para sempre lembrados.

Num momento de distração da professora, o menino levantou-se de sua carteira, foi até o quadro e circulou com giz colorido a sílaba CU, no meio da inofensiva palavra cálculos. Risos e cochichos surgiram, despertando a atenção da mestra. Protagonista de muitas histórias, a sílaba CU é tabu entre os professores mais pudicos. Por estes, culto, culpa, cultura, cuidado e acuse podem ser usadas sem restrições, mas as cuecas e cuscuz devem ser sempre evitadas pelo alvoroço que podem causar.

Mas ali, na turma da terceira série, na inocente palavra cálculos o cu gritava, destacado pelo menino. Assim que a professora percebeu, e com a serenidade que lhe é peculiar, falou: “Queridos, a sílaba CU é como qualquer outra e nos serve para escrever muitas palavras: cupom, currículo, curso, curtir, curral, cultivo, curva”. “Cuba também, né professora”, gritou um aluno (comunista, é claro!). “Curitiba”, disse outro, sonhando com a capital. “Cubo”, complementou a garota que se destacava em matemática. “Isso mesmo”, replicou a professora, com um sorriso de aprovação. “O nome correto para isso que o colega está falando é ânus e não cu”, explicou paciente. O silêncio imperou novamente diante da palavra tão perversa e daquela grande revelação. Algumas risadinhas tímidas escapavam, encolhidas atrás das pequenas mãozinhas enluvadas. Até que o protagonista da história quebra o silêncio e provoca gargalhadas incontroláveis: “Ai que chique! O cu da professora é ânus!”

PS: Se você, assim como eu, achava que cu tinha acento, saiba que me surpreendi ao ser corrigida: cu não leva acento. “A letra u só leva acento quando é a segunda vogal de um hiato”, dizem os gramáticos. Ou seja, usei o cu errado vida inteira. Verdade seja dita, o cu só encontra o a[ss]cento quando vai ao banheiro.

[Baseado em fatos reais... Como diria Manoel de Barros, só 10% é mentira, o resto é invenção]

Texto: Carolina Filipaki

Ilustração: Heleny Meiborg

(Publicado no Zine "Os", 2018)