domingo, 12 de abril de 2020

O carro do sonho


O carro do sonho ia passar pela minha rua. Isso nunca havia acontecido. Ouvi de longe a sua chegada. Anunciava sonhos de vários tamanhos e assegurava agradar as pessoas de todas as idades.
Desci as escadas correndo, pensando em todos os sonhos que poderia encontrar. Deixei a porta e o portão abertos por descuido, mas tenho certeza que era o destino deixando a passagem livre para os sonhos entrarem.

Quando ele dobrou a esquina, parecia-me um carro forte o suficiente para carregar os melhores sonhos do mundo. Era velho, amassado, batido, como um carro que carrega sonhos deveria ser. Se carregar sonhos fosse trabalho leve, não nos arrastaríamos a vida toda com(tra) alguns. Trazia na lataria remendada as marcas dos sonhos mais difíceis.

Corri ao seu encontro, afinal, não se pode esperar que os sonhos venham ao nosso portão. É preciso esforço para merecê-los. Cheguei ofegante e, assim que ele me viu, parou para mim. Desceu dali um senhor gordo, camisa aberta até o umbigo, suor escorrendo na testa, os pelos do peito saltavam para fora, mostrando em sua cor acinzentada que há muito tempo este senhor carregava os melhores sonhos do mundo em sua parati. Meu coração batia fora de ritmo e uma lágrima fazia-se pesada em meu olho. No fechar de uma pálpebra ela cairia como cataratas lavando meu rosto. Mas eu não piscava, talvez nem respirasse naquele momento infinito. Quando ele abrisse o porta-malas eu teria que escolher, dentre todos os sonhos que tinha, um, apenas um. Como escolher? Transpirava e tremia, ansiosa.

“Boa tarde, minha filha!”, ele me disse. Era como se o Tempo falasse comigo. Eu imaginava o Tempo como um senhor elegante, com um relógio de bolso, a nos controlar. Mas a vida é mestra em nos surpreender. O Tempo era estranho como o velho que eu via sentado na praça observando o tempo passar. “Temos poucas opções agora. Os sonhos são frescos e feitos todos os dias. No final da tarde é o que tem”. O Tempo me ameaçava dizendo que eu não teria muitas escolhas. “Nem sempre a vida nos dá opções”, pensei. Mas eu tive a certeza de que meu sonho estaria ali, porque a cada aurora meus sonhos se renovavam. Eram sonhos novos, como os que eu queria.

O porta-malas-sonhos da parati abriu-se rangendo, causando-me um arrepio na espinha. O cheiro doce da realização saia ali de dentro. Havia açúcar para todo lado. Sempre imaginei que as conquistas seriam doces e açucaradas, seriam um lambuzar-se e terminar satisfeita, com um bigode de açúcar e dedos lambidos. Os cestos estavam cobertos com toalhas xadrez, vermelhas e brancas, como em um piquenique perfeito, em um parque com sombras, grama verde e céu azul.   

“Vai querer de creme ou goiabada?”, indagou. “Gosto apenas dos sonhos de doce de leite”, respondi ainda tonta, golpeada pela desilusão e pelo odor de fritura. Voltei para casa de mãos vazias, peito arrasado e costas pesadas porque cabe a mim, apenas a mim, carregar o peso dos sonhos não realizados.